Fonte Jornal de Hoje.
Ainda adolescente, o garoto Ronaldo exibiu no modesto time do São Cristovão um talento que só se via nos grandes craques. Craques como Zico, que o pobre menino sonhava ver jogando no Maracanã. Até que a profissionalização soprou antes da puberdade. O final da década de 1980 abriu os céus da oportunidade para o rapaz. E lá estava Ronaldo sendo tratado como um raro diamante em oficina de joalheria. Com idade de juvenil, estreou oficialmente nos titulares do Cruzeiro, no Brasileirão de 1993. Naquele mesmo ano, o furacão teen encarou os zagueiros do Bahia, dando os primeiros sinais de que o mundo ainda seria varrido por sua força e agilidade. Não tinha ainda 17 anos e meteu cinco gols na goleada por 6 x 0, um recorde até então, desde 1971.
A trajetória fenomenal de Ronaldo se estende de 1993, no Cruzeiro, até 2002, na Inter de Milão, no mesmo ano em que dividiu com Rivaldo a glória da conquista do pentacampeonato brasileiro. Na Inter, ganhou o epíteto “Il Fenomeno”.
De 1994 a 1996, já vestindo a camisa do PSV Eindhoven, aquele jogador que desmanchava as estatísticas e ameaçava Pelé na relatividade entre gols e idade, arrebatava público e crítica da Europa com suas arrancadas ciclônicas em gramados holandeses.
Lançado muito cedo às feras e ao circo do futebol, Ronaldo teve que dividir sua vida em dois momentos: um de glória, com a bola nos pés; outro de drama, com a cabeça cheia das carências típicas dos adolescentes. Talvez venha daí sua deficiência no jogo aéreo.O “fenômeno” que há em Ronaldo não está, ao meu ver, diretamente ligado ao futebol mitico dos gênios. Ele não jogou como Pelé ou Maradona, não marcou gols como Romário ou Gerd Müller, não teve a técnica de Falcão e de Zidane. A fenomenalidade em Ronaldo pertence à construção de uma conjuntura em torno dele; ungido como o primeiro craque oficialmente representante da era globalizante do futebol. Foi a versão chapliniana desses “tempos modernos”, com a distinção de ser um operário bem pago.
A fase madura de Ronaldo, em que interesses publicitários o fizeram craque reciclável, não pode nos fazer esquecer os verdadeiros momentos do seu talento. É no Barcelona e na Inter de Milão que reside toda a sua categoria, a consubstanciação do seu esplendor. Quando chegou na cidade catalã, Ronaldo revelou-se nos primeiros dias como fizera no Cruzeiro aos 16 anos. Seus gols incríveis geravam manchetes espetaculares, às vezes mitificantes: “Ronaldo é um bruxo? É um deus? É o messias do futebol?”, indagou o diário El País.
No dia em que meteu três gols no cultuado goleiro Zubizarreta, o jornalista David Torras escreveu: “A Liga está adulterada. O Barcelona receberá uma advertência por inscrição indevida. Existem razões para crer que o tal Ronaldo é um extraterrestre”.
A timidez colaborava para ser impassível diante das brincadeiras dos amigos, que compuseram até uma música com o refrão “Que feio que é o Ronaldo”. Bem antes de ser “o gordo” no Brasil, ele perguntava com um riso tímido: “Vocês me acham mesmo feio?”. Mas a feiúra dos tempos de Bento Ribeiro dava lugar à beleza dos piques, dos dribles rápidos, dos chutes mortais. O Ronaldo que os italianos batizaram de Fenômeno não é aquele das Copas 1998 e 2006, nem o outro do Real Madrid e Milan.
Imagino João Saldanha e Mário Filho, numa mesa-redonda de nuvens, analisando os dois momentos do craque, como fossem dois “althusserianos” da bola a tecer comparações entre um jovem e um velho Ronaldo, como Karl Marx. Eles divinisariam o primeiro. Porque é preciso resguardar historicamente o craque que encantou o mundo até 2002, concluindo nas traves orientais as jogadas de Rivaldo.
O Ronaldo fenomenal não deve ser misturado nas engrenagens da fábrica de mitos que constrói e destrói coisas belas.
P.s. Ao ler este artigo, me deu uma falta no coração daquele bom futebol que era jogado. De um tempo de marketing apoiado na verdade e não na mentira.
1 comentários:
Belissimo texto!
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