sábado, 19 de junho de 2010

Adeus Saramago

“O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas do ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se planta ou cultiva, ou inda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é tal caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos.”

Levantado do chão, publicado em Lisboa em 1980,  é  o terceiro romance de José Saramago, precedido de Terra do Pecado, 1947 (seu primeiro livro),  e Manual de pintura e caligrafia, 1977. O escritor escreveu 17 romances. Na sua rica bagagem literária conta-se ainda quatro livros de contos, três de poesias, quatro de crônicas, cinco peças de teatro,  dois de memórias e  um de viagem, Viagem a Portugal, de 1989, maravilhosa viagem pelo seu país, na qual o viajor é conduzido pelo estilo e linguagens incomparáveis do escritor que sabe da história e de todas as artes de seu povo e dos encantos de sua terra.

Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1988. É o único escritor de língua portuguesa vencedor do Nobel. Em 1995, ganhou o Prêmio Camões. É detentor de dezenas de vários prêmios literários em Portugal e em outros países. O seu último romance, Caim, de 2009, está entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura de 2010.

Uma das minhas últimas leituras de Saramago é um pequeno e delicioso livro de memórias, As pequenas memórias (Companhia das Letras, 2006), um verdadeiro poema. É um retorno do escritor à sua infância e a adolescência. Nas lembranças, destaca-se a figura maior do avô materno, o velho Jerônimo,  que era a pessoa que ele mais admirava. Transcrevo alguns trechos desse capítulo, prestando minha modesta homenagem ao grande escritor:

“Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados em uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, gora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado no ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminhavam os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mas expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do fresco da madrugada. Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?”.

Só tinha o defeito de ser comunista e "ateu graças a Deus".

1 comentários:

Louis Ciffer disse...

Morre o homem, nasce o mito. E a saudade passa ser eterna.

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