quarta-feira, 30 de maio de 2012
Transcrevo o artigo de Dora Kramer, “Criação Coletiva”, publicado ontem no jornal O Estado de S. Paulo. Texto exemplar, análise perfeita, correta, exata do episódio que envolve o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do país. Se eu fosse bispo determinaria sua leitura no púlpito de todas as igrejas católicas. Se fosse pastor presbiteriano ou batista, ou mesmo Lutero assinaria embaixo. Leia:
- Não, o ex-presidente Lula não perdeu o juízo como sugere em princípio o relato da pressão explícita sobre ministros do Supremo Tribunal para influir no julgamento do mensalão, em particular na conversa com o ministro Gilmar Mendes eivada de impropriedades por parte de todas as partes.
- Lula não está fora de si. Está, isto sim, cada vez mais senhor de si. Investido no figurino do personagem autorizado a desrespeitar tudo e todos no cumprimento de suas vontades.
- E por que o faz? Porque sente que pode. E pode mesmo porque deixam que faça. A exacerbação desse rude atrevimento é fruto de criação coletiva e não surgiu da noite para o dia.
- A obra vem sendo construída gradativamente no terreno da permissividade geral onde se assentam fatores diversos e interesses múltiplos, cuja conjugação conferiu a Lula o diploma inimputável no qual ele se encontra em pleno usufruto.
- Nesse último e bastante assombroso caso, produto direto da condescendência institucional – para dizer de modo leve – de dois ex-presidentes da Corte guardiã da Constituição: o advogado Nelson Jobim, que convidou, e o ministro Gilmar Mendes, que aceitou ir ao encontro do ex-presidente.
- Nenhum dos dois dispõe da prerrogativa da inocência. Podiam até não imaginar que Lula chegaria ao ponto da desfaçatez de explicitar a intenção de influir no processo, aconselhando o tribunal a adiar o julgamento e ainda insinuar oferta de “proteção” ao ministro.
- Inverossímil é que não desconfiassem da motivação do ex-presidente que anunciou disposição de se dedicar diuturnamente ao desmonte da “farsa do mensalão” e provou isso ao alimentar a criação de uma comissão de inquérito no intuito de embaralhar as cartas e embananar o jogo.
-Mas, apenas para raciocinar aceitemos o pressuposto da ingenuidade, compremos a versão do encontro entre amigos e consideremos natural tanto o convite quanto a anuência.
-À primeira questão posta – “é inconveniente julgar esse processo agora” -, à primeira pergunta feita pelo ex-presidente – “não tem como adiar o julgamento?” -, se o ministro Gilmar Mendes tivesse agradecido ao convite e polidamente se retirado, não teria ouvido o que viria a seguir, segundo o relato que fez depois ao presidente do STF, ao procurador-geral da República e ao advogado-geral da União.
- Narrativa esta que se pressupõe verdadeira. Se aceitarmos a versão do desmentido apresentado por Nelson Jobim teremos de aceitar a existência de um caluniador com assento no Supremo Tribunal Federal e de esperar contra ele algum tipo de interpelação.
- Tivesse dado por encerrado o encontro logo no início, o ministro Gilmar Mendes não teria ficado “perplexo com o comportamento e as insinuações despropositadas do presidente Lula”.
- Não teria ouvido alusões ao seu possível envolvimento com o esquema Cachoeira – razão da oferta de proteção na CPMI -, não teria escutado o ex-presidente chamar o ministro Joaquim Barbosa de “complexado”.
- Não teria testemunhado Lula desqualificar ao mesmo tempo o ex-ministro Sepúlveda Pertence e a ministra Cármem Lúcia ao sugerir a existência de uma cadeia de comando com a frase “vou falar para o Pertence cuidar dela”.
- É verdade que se tivesse ido embora o ministro Gilmar Mendes teria poupado a si um enorme constrangimento.
- Mas não daria ao País a oportunidade de saber que o ex-presidente tem acesso a informações de um inquérito na data da conversa (26 de abril) ainda protegido por sigilo de Justiça.
- Não saberíamos que Lula diz orientar a conduta do ministro Dias Toffoli – “eu falei que ele tem que participar do julgamento” – e que afirma acompanhar de perto os passos do ministro revisor do processo do mensalão, Ricardo Lewandowski - “ele só iria apresentar o relatório no semestre que vem”.
- Em suma, ninguém fica bem nessa história, mas Lula fica pior ao deixar que a soberba e o ressentimento o façam porta-voz do pior combate: a desqualificação das instituições. Entre elas o papel de ex-presidente da República.
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