Foi um dia como os dos últimos anos para o jornalista Araken Madeira. Acordou com o barulho do vendedor de milho cozido e pamonha, desceu até a calçada, voltou para escovar os dentes, ouviu atentamente o Bom Dia Brasil e se escafedeu na rua.Tomou café, como sempre, numa loja de conveniência a poucos metros de casa; o mesmo café com leite, a mesma tapioca e o mesmo cuscuz com ovos mexidos. Do posto de gasolina até a redação, tempo suficiente para uma faixa do CD do Coldplay.Alguns discos e algumas pesquisas literárias no Google lhes ajudavam no que ele imaginava ser sua inclusão cultural nas tribos da cidade. Cinquentão, Araken disfarçava a idade com roupas e atitudes adolescentes, além de alguns costumes da galera.Um dia produtivo. Escreveu como quis, o devaneio ortográfico fluindo numa boa. Notas do mais bravo e engajado jornalismo em favor do governo. Era louco pelo governo, vidrado nos políticos governistas, um gosto retroativo suprindo sua alienação de juventude.Araken Madeira era mais partidário que o mais radical partidário do partido radical. Considerem aqui toda e qualquer redundância, por favor. Nada nos atos e posturas do governo ou do partido passava em branco. Tudo gerava elogios nas letras do redator.Voltou para casa no começo da noite, prometera jantar com a filha adolescente no shopping. Encontrou a TV ligada com o livro de “frases” políticas e filosóficas, que ele consultava todo dia para produzir seus textos bajulatórios e chapas-brancas. Em cima do aparelho, um bilhete preso à capa do livro por um pegador de roupa.Era de Iara, a filha, que ele registrara há 15 anos em homenagem à namorada do guerrilheiro Lamarca: “Oi pai, desculpa naum esperar por vc, como combinado, naum deu p/ adiar uma coisa q eu vinha transando faz tempo c/ Ramón meu namorado argentino.Sabe pai, decidimos sartar fora do Brasil e ir viver em Macho Pichu, aquela cidade das antigas no Peru. Espero criar seu neto num clima bem maneiro. Pois é pai, tô grávida e não sabia como te dizer pessoalmente. Tentei uma vez, depois de cheirar uma fileira, mas desisti.A gente teve que viajar logo pq a polícia quer prender o Ramón. O pessoal lá da boca de fumo, onde a gente compra baseado, denunciou ele pq namora comigo que sou de menor, e como ele já tem uma prisão por pedofilia em Córdoba, preferimos adiantar o lance.Não se preocupe comigo, gosto dele e ele de mim e temos grana suficiente pra os primeiros meses do bebê. Ramón recebeu um dinheirão num esquema de licitação do governo daqui e tem uma bolada de dólar pra trocar depois.Peço a Deus pra o nosso filho não nascer com o tal do HIV, pois a ex-mulher de Ramón morreu de aids e ele acha que pegou o vírus, mas garante que não passou pra mim. Quando eu chegar no Peru mando notícias. Te amo pai, Iara”.Branco feito uma tapioca sem manteiga, suando em bicas, Araken perdeu o eixo como se fosse candidato que leva um chifre em plena campanha. Quando sentiu que estava pra desmaiar, percebeu outro bilhete afixado na porta da geladeira.Era de Iara também: “Oi paizão, desculpa aí tá legal? O bilhete que vc leu naum tem nada a ver. Estou bem, fui ao shopping sozinha e tenho horror a argentino (aprendi com vc). Escrevi isso só pra te mostrar que existem coisas que causam o mesmo horror dos seus elogios a um governo corrupto. Se toque, pai, venha jantar comigo. Beijo, Iara".
P.s. Recebido por e-mail.
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